terça-feira, 31 de outubro de 2017

Depoimento de Rita Bertozzi




Foi tudo muito planejado: Compramos nossa casa, organizamos nossa vida financeira e nos sentimos preparados para dar o maior passo de nossas vidas: TER UM FILHO!

Foi tudo muito rápido.... Na nossa primeira tentativa engravidamos! Foi uma mistura de medo, insegurança, amor e alegria! Quando recebemos o positivo foi uma alegria sem fim! Um dos momentos mais mágicos do nosso relacionamento: 10.12.2016.

A partir de então tudo foi festa! Nossa família e amigos receberam a notícia com muita alegria! Estávamos naquele momento realizando também o sonho de alguns deles. 

Infelizmente a vida nos prega peças e com a mesma rapidez que engravidamos perdemos nosso filho, nosso sonho realizado! 

Foi na primeira ultrassom que percebemos algo errado... Não existia nem ao menos o saco gestacional! Mas estava muito no início da gestação, então resolvemos aguardar mais um pouco para repetir a próxima e enquanto isso o Beta HCG era feito a cada 2 dias para verificar sua evolução! A boa notícia é que ele evoluia, mas ao mesmo tempo ele evoluia lentamente o que não era bom...
Foram quatro semanas repetindo o beta, repetindo ultrassons, chorando, pedindo para Deus que nosso filho estivesse bem! Quatro semanas de angústia! 

Perdi as contas de quantos Betas, quantas ultrassons e eu naquele momento só queria poder ouvir seu coração e saber se estava tudo bem.

Passamos o reveillon em casa! Eu tentava segurar as lágrimas, mas elas escorriam pelo meu rosto sem eu poder controlar! Eu já estava com um pequeno sangramento, mas ainda não tinhamos a confirmação do aborto, no fundo ainda existia uma esperança de ouvir que tudo o que vivemos não passou de um susto e que nosso filho estava bem! 

Dia 10.01.2016 - Exatamente um mês após o nosso positivo recebemos a confirmação de que nossa gestação não tinha evoluído: Beta diminuindo, ultrassom sem nenhum vestígio do feto!

Doeu muito... Ainda dói! É muito doloroso ver o maior sonho da sua vida escorrer pelas suas mãos e não poder fazer nada! Você simplesmente não pode controlar... 

Ele viveu em mim pouco tempo, mas foi o suficiente para me transformar! A dor se transformou em força, as lágrimas se transformaram em fé, a angústia deu lugar a paz! Ele me fez evoluir muito! Me fez crescer como pessoa! Me fez uma pessoa melhor! 

Foi essencial a presença das pessoas que amo ao meu lado! Meu marido foi exemplo de fé e me carregou nos braços quando não tinha mais forças para caminhar! Minha família foi exemplo de amor e naquele momento me senti abraçada por todos eles! 

Eu lembro do meu filho todos os dias! Peço a Deus para que ele esteja em um bom lugar, pois não tenho dúvida que ele esteve aqui por pouco tempo, mas cumpriu sua jornada com louvor: ele transformou nossas vidas! 
Por isso não quero nunca que ele seja esquecido, não quero ouvir que foi melhor ele partir no começo, afinal eu já era a mãe dele a partir do momento que peguei aquele positivo! 

Ele será sempre nosso anjo! 

Hoje recebemos um presente de Deus: Estamos grávidos novamente! 24 semanas e um garotão cheio de saúde! Mas isso não irá apagar tudo o que vivemos juntos! Nosso anjo sem dúvida continua nos iluminando nessa nova fase de nossas vidas! 

A mensagem que gostaria de deixar é: Não deixe de continuar tentando, mas não deixe uma parte de sua vida pra trás! Não deixe de falar sobre sua perda, isso te ajudará a continuar! 

Um abraço a todas as mamães que assim como eu sofreram essa perda tão precoce e dolorosa. 

Eu não quero tentar novamente! Eu queria aquele bebê...





Eu sofri um aborto precoce. Quatro deles, na verdade. Chega a ser curioso porque não precisei passar por toda a gravidez apenas para sofrer uma perda no final. Mas há uma dificuldade muito real em ter uma perda precoce, que às vezes não é reconhecida. Eu tenho uma compreensão muito profunda do que minha perda NÃO é. . . mas também tenho uma compreensão muito profunda do que É..


Aqui está o que o aborto espontâneo significou para mim.






Eu estava na maioria das vezes sozinha.


Eu "entrei em trabalho de parto" sozinha, sem uma doula, sem uma enfermeira certificando-me de que eu estava segura, muitas vezes sem a presença do meu marido porque ele tinha que ir para o trabalho. Monitorando cuidadosamente minha própria perda de sangue, cuidei de meus filhos mais velhos enquanto meu útero se esvaziava do irmão que eu esperava lhes dar. À medida que minhas perdas aumentaram ao longo dos anos (cinco em cinco anos, para ser exata), amigos e familiares me apoiaram com cartões, flores, refeições e, ocasionalmente, cuidando das crianças nos dias mais difíceis do sangramento. Com isso, considero-me uma das poucas sortudas. Conheço muitas outras que estavam mais sozinhas - e solitárias - durante suas perdas, e isso machuca meu coração.


Eu tive poucos recursos.


Além de verificar meus hormônios da gravidez, para garantir que eles voltariam ao normal e, uma ou duas vezes, oferecer-me medicamentos contra a dor, não havia muito que meus médicos pudessem fazer por mim. Eu falava principalmente com as enfermeiras por telefone. As instruções delas para mim eram simples: "Sinto muito, mas seu hCG diminuiu e você vai abortar. Precisamos continuar a monitorá-la para garantir que o hormônio diminua até 0. Por favor, conte pra gente se você encharcar mais de um absorvente por hora". E foi isso.


Confiei fortemente no Google, em blogs e experiências de amigas para me preparar mentalmente para o processo físico que aconteceria. Enquanto eu explorava a biblioteca e uma livraria a procura de livros sobre o assunto, encontrei relativamente poucos e nenhum deles me ajudou a entender o processo muito real que meu corpo estava prestes a passar. Uma visita ao pronto-socorro confirmou o que eu ouço de muitas mães que sofreram abortos: as equipes dos prontos-socorros não estão preparadas para lidar com as complicações emocionais e físicas do aborto espontâneo. Na minha opinião, não acho que os consultórios dos obstetras estejam preparados para perdas iniciais também.


O processo foi mais difícil, assustador e emocional do que eu poderia imaginar.


Tudo demorou muito mais do que eu esperava, algumas vezes levaram semanas. Os remédios de dor que eu tinha em casa e a bolsa de água quente eram pouco eficazes para diminuir as cólicas das contrações que invadiram meu corpo. A quantidade de sangue sempre me chocou. Com as minhas perdas entre 5-8 semanas de gravidez, não esperava mais do que um período pesado. Mas essa nunca foi minha experiência.


Nunca esquecerei o dia em que tentei parecer "normal" e fui a uma apresentação comercial fora da cidade. Uma vez que a enfermeira disse que meu hCG estava diminuindo e que eu teria um aborto, era um jogo de espera para ver quando meu corpo se manifestaria. Eu nunca sabia ao certo quando o sangramento começaria, ou ficaria intenso, e naquele dia aconteceu. Meu marido parou em um posto de gasolina enquanto meu útero rejeitava aquela gravidez que eu queria tão desesperadamente. O chão sob meus pés parecia de uma cena de crime e eu sabia que precisaria de ajuda para limpá-lo adequadamente. As lágrimas caíram enquanto em dava a descarga. O fim de uma vida merecia mais honra do que eu poderia oferecer naquele momento. Eu desejava ter enterrado devidamente o meu filho.


Senti a expectativa da sociedade para superar rapidamente.


Nossa sociedade não é boa em reconhecer a perda quando associada a qualquer perda recente (e, na maioria das vezes, não é boa em respeitar as perdas posteriores também). Ainda temos muito o que melhorar. Enquanto algumas pessoas entenderam que minha vida havia mudado desde o momento em que sabia que estava grávida, eu sentia que as pessoas esperavam que eu continuasse com a vida normal depois de ter abortado. Como não tive uma barriga para provar que eu estava grávida, porque não tive meses de gravidez nos quais as outras pessoas pudessem ver minha gravidez avançar, então eu deveria poder superar isso, seguir em frente e voltar à vida normal.
Senti que eu deveria ficar em silêncio.


Mesmo agora, estou consciente enquanto escrevo sobre minhas experiências. Eu me preocupo que você pense que estou me alongando no assunto, ou preso nele, ou talvez pior, sendo a rainha do drama. Eu sei que não deveria ter que me censurar - afinal de contas, estamos no século XXI, as mulheres marcham com seus gorros de gatinho, por isso, para chorar alto eu deveria dizer: "Eu abortei. Isso machuca. Eu estou sofrendo... " e o mundo ainda assim seguiria em frente. E ainda me sinto estranha toda vez que escrevo ou falo sobre meus abortos. Se eu fosse honesta com você, eu diria que eu me sinto envergonhada de quanto chorei as minhas perdas.


Muitos acreditam que "cedo" significa "não tão significativo", e eu lutei profundamente acreditando que meu amor e meu sofrimento estavam fora de lugar.


Eu fazia parte do clube das mães que perderam um bebê, mas sentia-me inapropriada. Eu não queria o que muitos consideram uma “perda mais difícil” para pertencer, mas, mesmo assim, eu me senti como uma intrusa no mundo das mães enlutadas. Eu ainda sou uma mãe enlutada se eu não vi meu bebê, mesmo em ultrassom? E se eu escolhi não nomear meu filho? E se tudo o que eu tinha para provar que meu filho existiu era um teste de gravidez positivo?


Na verdade, eu estava procurando por validação para o meu aborto precoce em todas as formas erradas. Eu não precisava de outros (nem mesmo do clube de perda de bebê) para me dizer que meu bebê era importante, desejado ou amado. Eu sabia tudo isso. O que eu só precisava ouvir - o que eu precisava dizer a mim mesma - era que estava certo e era necessário sofrer a perda do meu bebê, mesmo que ele fosse pequeno e precoce.


Eu aguentei três perdas antes que a comunidade médica me permitisse o direito de buscar respostas.


Os médicos não queriam fazer exames antes que eu chegasse a três abortos. Eu me perguntava quando minhas perdas, esses bebês que eu tentei imaginar por tanto tempo, começariam a “contar”. “Às vezes, essas coisas simplesmente acontecem” não parecia reconfortante quando o aborto precoce continuou acontecendo. Dizer adeus a três bebês apenas para encontrar uma resposta parecia um preço muito alto para pagar para entender minha fertilidade e aumentar minha família.


Eu não queria tentar novamente. Eu queria aquele bebê.


Uma das partes mais difíceis sobre a perda precoce da gravidez é essa noção de que as gravidezes são fáceis de alcançar e fáceis de substituir. Se você tiver uma perda precoce, bem, sem incômodo - tente novamente no próximo mês. Exceto que, com cada teste de gravidez positivo, eu descobri no fundo do meu coração que eu queria esse bebê. Eu queria que esse ficasse. Para descobrir se era um menino ou uma menina. Para assistir a sua pequena personalidade se desenrolar. Eu queria aconchega-lo, eu queria beijar suas bochechas gordinhas, queria decidir se suas fotos de bebê pareciam mais com as minhas ou com meu marido. E depois de tentar por meses (ou anos) para conseguir essa gravidez, não queria começar o processo de tentar conceber tudo de novo. Não, não era outra gravidez que eu queria. Eu queria ESSE bebê.


Queria tão desesperadamente conhecer meu bebê, se era um menino ou uma menina. Para ver suas pequenas mãos e pés ou o bater o coração.


Mas um aborto precoce levou isso de mim. E continuou a tirar isso de mim. Tristeza e tristeza me dominaram, mas não consegui dizer exatamente por quem era. Sim, meu bebê. Mas quem era meu bebê? O fato de eu não poder responder com certeza me partia o coração.


Então, sim, eu tive um aborto precoce.


Doeu como o inferno. Eu lutei, chorei, fiquei triste. Eu avancei. Mas nunca vou parar de me perguntar quem foram esses bebês.


Autora: Rachel Lewis
Publicado originalmente em inglês na Still Standing Magazine (http://stillstandingmag.com/2017/10/dont-want-try-wanted-baby/)

domingo, 29 de outubro de 2017




Eu não tenho um bebê arco-íris. Não quero que tenham dó de mim, mas um pouco de respeito pela minha dor não seria nada mal.

Há dois anos, quando minha filha morreu durante o parto, eu não imaginava que estava se iniciando um dos momentos de maior dor e autodescobrimento da minha vida. Foram meses e meses de muito choro, muita raiva do mundo, dor, saudade do que não vivemos juntas. Passei do momento de maior alegria, que foi a minha gestação, para um momento de xeque-mate existencial: 

Quem sou eu agora? O que quero pra minha vida? Eu ainda amo a minha vida? Quero viver? O que me dá alegria após a morte da minha filha? Por que e pra quê viver?

Foi um processo dolorido. Olhar pra mim e me redescobrir. Reencontrar as pequenas alegrias. Viajar com meu marido e conhecer novos lugares. Poder me sentir amada e amar. Olhar pro mundo e achar que ele ainda era bonito e valia a pena. Assistir TV com a minha mãe e gargalhar vendo o Silvio Santos. Brincar com os filhos das minhas primas e me sentir querida. Estudar, aprender coisas novas. Deixar um trabalho que me explorava emocionalmente. Conhecer novas pessoas. Sentir que posso ajudar as pessoas, acolhendo e falando sobre a minha filha.

Durante todo esse processo, a vontade de ter um segundo filho ou filha estava comigo. Pra ser bem sincera, essa vontade nunca deixou meu coração. Minha filha morreu e, se pudesse, eu estaria grávida já no dia seguinte. Mas respeitei as orientações médicas e comecei a tentar após seis meses. A cada tentativa e a cada menstruação eu sofria. A ansiedade foi crescendo. Outras mães que eu conhecia engravidavam. Tinham seus bebês arco-íris. E eu torcia por elas, vibrava com elas, acompanhava seus medos. E o meu filho ou filha não chegava… e eu doía… e eu rezava e parecia que Deus mais uma vez não me ouvia…

Descobri questões de fertilidade que dificultavam a gravidez. Aceitei todos os tratamentos. E meu bebê arco-íris ainda não veio… E eu ainda quero que ele venha. 

Mas hoje já olho pra ele como um novo filho, não mais como uma tábua de salvação. Ele não vai vir pra ocupar o lugar da irmã ou pra preencher um vazio. Nem pra me dar esperança. Nem pra me ajudar a superar. Espero, sim, que ele venha, pra completar a nossa família. Pra me ensinar o outro lado da maternidade. Pra que a gente possa ter uma vida juntos.

A minha alegria, a minha esperança, a vontade de viver… tudo isso eu recuperei no meu processo de luto e autodescobrimento. Na verdade, ainda recupero dia após dia. Hoje eu tenho vontade de viver, independente de uma nova gravidez. Eu sei que minha vida vale a pena! Que o mundo é bonito e que eu quero estar nele e ser uma pessoa melhor. E este é o meu arco-íris!

Depoimento de Juliana Couto



Na voz da mãe, Juliana.

Seu corpo será controlado à primeira ideia de maternidade. Se você engravidar e abortar espontaneamente, seu filho será considerado pouco. A curetagem é simples, o aborto natural também, a mulher se recupera e logo outro filho vem porque não era a hora. Mas se a mulher quiser abortar porque não quer ser mãe, quaisquer que sejam as razões que a movem, ela é uma assassina de bebês. Se a mulher optar por um parto domiciliar, ela será condenada como a natureba que coloca em risco não só a vida dela, mas a do bebê. Mas se ela optar por uma cesárea agendada, será aplaudida, ainda que os embasamentos científicos apontem cada vez mais o risco da desnecesárea. Se essa mulher abortar espontaneamente, impedindo qualquer concretização de parto domiciliar, e optar por abortar naturalmente em sua casa, ela não será condenada. Aliás, ninguém se manifestará para recolher aqueles riscos, agora desfeitos em aborto, no chão.

Abortar dói. Física e espiritualmente. É preciso escrever e reescrever a sensação de perder o chão sob os pés e seguir andando, a sensação de dor que vem das entranhas e segue acompanhando um corpo que já não gesta como antes. Dói repassar os pontos, perceber os sinais antes não percebidos, compreender que é preciso que o corpo saia de você. Abortar dói. O útero dilata pouco, mas dilata, e rapidamente. Diferentemente da contração do parto, que irradia das costas em volta do corpo, a dilatação do aborto faz doer o útero, as costas, a alma, separadamente. Foram meses até que as palavras sensoriais de abortar se encontrassem: imagine-se em um queda d’água com um filete de água forte e sem forma, correndo a esmo. Imagine-se desesperadamente tentando pegar esse filete e torná-lo uma pequena poça em suas mãos, um poça pequena e constante. Imagine essa poça como a única possibilidade de vida. A água não é controlável. Nem a vida, nem o aborto. Abortar um filho é a sensação constante da água esvaindo pelas mãos. Ainda que conscientemente se saiba que a água não pode ser controlada, pegada, guardada, o inconsciente não se exime em tentar, tão forte, rígido e competente quanto a água. Essa é a sensação desesperadora de perder um filho. Diferentemente do parto, quando em grandes passagens espirituais nascem um bebê, uma placenta e uma mãe, no aborto nasce uma mãe, com uma ruptura na alma avassaladora. O útero dá conta de desfazer as camadas do endométrio (que um dia formariam a placenta) que se desprende em pedaços e sai em pedaços, grandes placas de sangue. O sangue é constante. Ele jorra, ele sai, não para, não há intermitência, pausa ou descanso. Há descaso. Em algum momento entre as placas de sangue, é possível perceber a saída de uma pequena bolsa, transparente, pequena, com um pequeno formato no interior. Já sem vida, sem batimentos, apenas a ideia do que seria o segundo filho. Dói.

Dói o desligamento, dói a quebra, dói a interrupção, dói compreender e aceitar ao mesmo tempo em que o querer o filho prevalece - das complexidades da maternidade. Dói a invisibilidade da família. No caso, essa família, tão bem encaixada em tantos padrões e ideias, com a consciência desses padrões e desse querer sem família. Uma mãe, um pai, dois filhos - quatro, mas um deles invisível. Dói a ideia de que todos ao redor veem seu filho como peça substituível : logo vem outro, não era para ser, não se sabem os desígnios da vida, é aprendizado (esse é especialmente cruel; afinal, quem em sã consciência fala para uma mãe que perdeu um filho que abortar placas de sangue e ver seu filho morto saindo da vagina é um aprendizado, em pleno luto?). Dói lembrar dos comentários anteriores: aquela prima que avisou “só conta para todos depois das 12 semanas”, aquela tia que disse “juízo”.

Não basta você se encaixar em todos os padrões necessários (cabe aqui, esclarecer que é compreendendo o que são padrões sociais, estereótipos e entendendo o que nos leva a ser assim), não basta você optar pela monogamia, se estabelecer em um relacionamento heterossexual, não basta você ter um filho dentro de um casamento, não basta os responsáveis por essa família, a mãe e o pai, trabalharem, se encaixando em padrões nojentos do mercado de trabalho e com essa consciência trabalhando dentro deles, coagindo-se sem coagir, não basta optar pelas boas novas da educação infantil, não bastam os anos de estudo e dedicação acadêmica, as noites profissionais em claro, não basta o que a vida já deixou de marcas profundas em ambos, não basta o medo de reencontrar os fantasmas, não basta. Alguém dirá “juízo” ao seu segundo filho, eu seu ventre, que bravamente lutou (e só você sabe) pelas batidas compassadas e fortes de um minúsculo coração. Nada basta. Você vai abortar, vai doer, você vai repassar a história das mulheres de onde veio, da família de onde veio e o “juízo” vai ressoar, o não esperar as 12 semanas vai ressoar.

Ser abençoada com ciclos menstruais pós-aborto curtos, indolores e rápidos é gritar os quatro cantos do universo uterino: obrigada por me poupar. O que não impede que a dor volte, que a lembrança retorne e que de tempos em tempos, o filete de sangue menstrual recorde a tarde em que se perdeu um filho. A dor, as poças de sangue, o buraco na alma já tão escancarado e fundo que é vazio, o vazio da perda. A necessidade de estar ali para o mais velho, aquele que será sempre o mais velho, que ensinou a você tudo. E o mais novo, que invisível, ensinou o outro tudo que você não previra. Dói perceber que o segundo filho não é comemorado pelos familiares e amigos como o primeiro, que ele parece ser menos. Que falam “de novo, grávida?” e que poucas pessoas realmente parabenizaram, torceram, felicitaram.

Dói saber que você dedicou semanas de amor infinito para alguém que precisava partir. Será que esse corpo, ainda sem alma, apenas concepção, ainda a esperar pelo espírito que o habitaria, compreendia meu amor?

Sim, compreendia. Eu o via, tão inteiro quanto o irmão.

Vai filho, eu estarei aqui, ambos invisíveis.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Depoimento de Julie Mahfud




Após 5 anos, uma cirurgia e muitas injeções para engravidar, tive o resultado de exame positivo que traria para minha vida nosso filho. Muito contente, dividi a alegria toda família e amigos.  Pouco depois as coisas iam mal, o hormônio HCG não evoluía corretamente e por fim parei na maternidade, onde soube que o bebê se alojou no ovário. Foi terrivelmente desolador, Deus em sua sabedoria já tinha levado esse anjo, ao menos não precisei tirar sua vida já que o local era incompatível. Sofri muito, sozinha. Ouvi os clássicos confortos de quem não sabe o que dizer frente à tamanha dor: “daqui a pouco engravida de novo”, “agradece que não teve nenhum filho especial”. Nada amenizava a dor, e essa dor eu senti sozinha.
Passado um período me reergui e fui com unhas e dentes atrás do sonho. Enfrentamos uma fertilização in vitro, processo que foi difícil e doloroso. Engravidei novamente, desta vez compartilhei a notícia somente com alguns familiares a fim de evitar o sofrimento. Levamos a gestação deste menino, Francisco, até a 10° semana onde então Deus recolheu-me mais um filho. Novamente a dor, o desespero, a saudade, a frustração. O sonho arrancado de mim. Novamente as mesmas frases de consolo que me faziam sentir-me sozinha. “Que bom que foi no começo” era a sentença que mais me doía escutar. Invalidava a existência do meu filho, sua importância como membro da família. Após esta perda, houve outras seis, porém passei a guardar para mim cada positivo anunciando a chegada de um novo bebê, assim como cada sangramento que anunciava sua partida. Descobri que a dor é igual, mas era mais fácil de enfrentar sozinha, em terapia, em grupos de apoio, que em meio à insensibilidade. De gestações químicas (antes da 5° semana) a Francisco que possuía nome e ficou comigo por mais tempo, todas tiveram o mesmo sentimento: sonho roubado. Tentei diversos tratamentos, diversas medicações profiláticas na tentativa de segurar as gestações, mas nada funcionou.
Hoje eu sinto apenas saudade do sonho que voou das minhas mãos. Já tive muitas crises de choro desesperada, já tive muitos sentimentos negativos, me sentia só e sem apoio. Hoje sinto gratidão por cada um que eu seu amor me escolheu como mãe, e gratidão a Deus pela oportunidade de ter sido o abrigo amoroso de cada ser que necessitava daquela vivência, seja por qual razão fosse. E saudade... Saudades eternas daquele sonho que escorreu pelas minhas pernas, inúmeras vezes, e não pude fazer nada. Queria apenas mais uma chance... Uma oportunidade de tentar fazer algo diferente, se é que ainda existe algo que não foi feito.

Hoje busquei ocupações que me fizessem sentir alguém importante, pois como mulher, sinto que fracassei. Guardo a esperança dentro de um cilindro de criopreservação em uma clínica, onde um dia espero ter a saúde e amparo médico necessário para fazer tal esperança florescer. Enquanto isso levo a vida com a saudade do que se foi e a fé no que virá.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Encontro de Novembro/2017


Estaremos juntos novamente no dia 11 de novembro, aqui em Campinas/SP para conversar mais sobre nosso processo de luto: dores, dificuldades, desafios e conquistas. Vamos partilhar na roda de conversa sobre as coisas que ouvimos de outras pessoas que nos machucam tanto mas também as coisas que nos fortalecem e fazem seguir em frente! Teremos um momento muito especial em que os participantes poderão receber muitas palavras de apoio e incentivo. Quer saber como? Venha estar conosco nesse encontro! Temos certeza que será uma tarde recheada de coisas boas e. com certeza você sairá com o coração mais leve! ❤️❤️❤️
Inscrições no link abaixo. Esperamos por você!!!

Depoimento de Thais Puppo Onaga




Qual é a medida do sofrimento? Quais são  os motivos que se pode sofrer? 
A sociedade lista àquilo que você pode chorar e àquilo que é "normal" e você não  deve sofrer.  E o aborto espontâneo está nessa lista do "normal". 
Quando engravidei pela segunda vez foi uma imensa alegria. Eu sabia que aquela sementinha  tão pequenina ia se transformar numa linda ou num lindo garotinho. Mas eu perdi. Perdi meu filho,  meu sonho, minha expectativa. E fui silenciada pelos familiares e amigos. Afinal, era tão pequeno, o tempo foi tão  breve. O que tinha em meu ventre não era  nada. E eu acreditei. Acreditei que não  poderia sofrer e me calei. Engoli meu choro, minha frustração, meu grito.  
Eu engravidei outras 3 vezes e perdi todos eles. 
O segundo bebê  que eu perdi foi o mais difícil, o desenvolvimento dele estava muito lento, no fundo eu sabia que ele não  viveria tanto tempo,  mas ele foi guerreiro. Fazia ultrassom e ele estava lá,  lutando pela vida. Até que uma manhã,  acordei com dores fortes, logo as contrações ficaram regulares e eu o perdi depois do almoço no chuveiro de casa. Eu estava com 9 semanas e ele ainda tinha o tamanho de 6 semanas.
E mais  uma vez minha dor foi silenciada. Não tive apoio, não  tive colo, não me senti amparada e acolhida. Meus abortos eram tabu. Ninguém falava e não me deixava falar. Sempre escutava: mas você precisa relaxar! 
Com a ajuda do Grupo SobreViver consegui me impor,  falar sobre meus abortos abertamente e chorar sem ter vergonha. Meu sofrimento não era bobagem. Quatro filhos meus se foram e não estão aqui. 
Pra um bebê  ser grande, ele precisou ser pequeno primeiro. Eu os amei desde o positivo!  
Por acaso você não amou seus filhos desde que descobriu que estava grávida?? 
Eu só peço empatia...

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Depoimento de Mariana Vaz


(Tatuagem que eu fiz em homenagem ao meu pequeno milagre)

Já era de noite quando eu comecei a passar muito mal, não conseguia uma posição confortável pra dormir e parecia que havia uma festa no meu estômago que me fazia sentir muitos enjôos. Uma semana depois eu recebi um enorme POSITIVO no teste de gravidez. Foi um susto enorme, não vou mentir. Estava começando a faculdade, meu namorado não mora na mesma cidade que eu, não tinha emprego. Mas mesmo com toda essa confusão eu recebi muito apoio do meu namorado (que se apaixonou quase que instantaneamente pelo nosso filho) e da minha família. 
Amar meu filho foi a coisa mais fácil do mundo. O sentimento cresceu antes mesmo que eu pudesse fazer alguma coisa a respeito. Eu sentia que meu corpo já não me pertencia mais, que meu corpo estava cumprindo a missão maravilhosa de gerar uma vida. E não qualquer vida. O meu filho. 
Tudo era incrível, apesar dos momentos cansativos, das mudanças hormonais. Eu não havia sentido ele mexer, não havia feito uma ultrassonografia ainda, e mesmo assim eu já não me sentia mais sozinha. Sentia que eu tinha a pessoa mais importante do mundo no meu ventre. 
É impossível expressar através de palavras todos os sentimentos, amor de mãe não se explica, se sente. 
Fiz a primeira ultrassom com 6 semanas: o bebê estava bem. Coração batendo forte, tamanho legal, saco gestacional regular. Tudo no lugar. 
Eu respeitei aliviada, era como se eu tivesse ganhado a maior das recompensas do mundo. 
Uma semana depois eu senti dores muito fortes, falaram que era normal, mas algo em mim falava que tinha alguma coisa errada. Fui no médico e ele disse que meu colo do útero estava fechado e que tava tudo bem, pois eu não tinha sangramento.
Não acreditei. Embora tudo demonstrasse o contrário, eu sabia que não estava tudo bem. Não conseguia parar de chorar e a angustia no meu peito crescia absurdamente. Eu estava morrendo de medo.
Fui em um segundo médico que afirmou que meu colo do útero estava fechado, mas que iria pedir uma USG pra descartar qualquer coisa. Foi aí que meu inferno começou. 
Na manhã seguinte marquei minha ultrasom com a médica que havia feito a primeira, ela sempre foi uma pessoa muito amorosa comigo, paciente e compreensiva. Entretanto nesse dia ela não conseguiu detectar o batimento cardíaco do bebê, preocupada ela chamou um segundo médico para uma opinião. O médico em questão foi super sem educação, invalidando completamente o fato de que ele estava lidando com uma mãe que estava perdendo seu bem mais precioso: seu filho. 
Ele me tratou super mal, disse que eu "poderia desistir da ideia de ter um filho agora". Oi? Como assim? Eu saí da clínica chorando muito. Me sentindo o pior ser humano do mundo. 
Eu não entendia, não entendia porque aquilo estava acontecendo comigo. Eu só queria que tudo estivesse bem com o meu filho. Eu só queria saber que eu daqui a alguns meses poderia ver meu pequeno. 
Pediram para que eu refizesse o exame depois de uma semana, mas um dia depois o meu sangramento começou. Fui no médico novamente e me receitaram Ultragestan e repouso absoluto. 
Naquele momento eu só queria que aquele inferno acabasse logo e que no final ficasse tudo bem com o meu filho. Apesar de todas as estatísticas serem desfavoráveis, eu ainda tinha esperanças de as coisas fossem terminar bem. 
Parte fundamental dessa história foi a minha médica: ela foi um amor do começo ao final de toda essa história. Parecia sentir todas as emoções comigo, me ligava, mandava mensagem, tudo para saber como eu estava e se tinha algo que ela poderia fazer para me ajudar. Ela foi a médica mais humana que eu conheci e isso me ajudou demais, fez com que eu não me sentisse sozinha nos piores dias da minha vida. 
Em uma sexta-feira o sangramento aumentou rapidamente e as dores também. Eu já não conseguia mais andar de tanta dor e eu só sabia chorar. Foi a noite mais longa da minha vida. 
No sábado de manhã eu fui na minha médica que me passou uma ultrasom para confirmar ou não o aborto. 
Fui na mesma clínica anteriormente citada porque ela é a melhor da cidade onde eu moro. Chegando lá a médica disse que eu estava sujando tudo de sangue e confirmou que meu bebê já não tinha mais batimentos cardíacos. Eu estava segurando o choro e perguntei se não tinha mesmo como ouvir os batimentos e ela gritou comigo perguntando se eu não estava prestando atenção no fato de que não tinha mais batimentos. 
Eu só queria sair dali correndo. Eu só queria me sentir acolhida por alguém e eu me sentia completamente sozinha. Meu namorado estava longe, minha mãe estava longe e meu pai já é um senhor de idade que não sabia muito bem como lidar com essa situação. 
Decidi que não iria guardar isso pra mim, escrevi um texto para o meu filho e isso foi libertador. Eu senti naquele momento que seria uma jornada difícil. Que validar a existência do meu filho talvez fosse a coisa mais difícil que eu teria que enfrentar, porque as pessoas não falam sobre a perda gestacional e quando falam ignoram a dor que ela carrega. 
Minha dor jamais vai diminuir, eu perdi meu filho, afinal. Eu aprendo todo dia um pouco a lidar com ela, mas para isso eu preciso falar sobre. Não preciso de pessoas que ignorem o que aconteceu, que não me perguntem nem como eu estou. 
Eu precisava me sentir acolhida e me senti por várias pessoas. Mas ainda assim eu vi pessoas próximas se afastando no momento em que eu mais precisei delas. 
A dor de perder meu filho é incomparável com qualquer outra coisa que eu já tenha sentido. E o amor que eu tenho por ele é o maior sentimento do mundo. 
Eu amo o meu filho e vou ser pra sempre sua mãe e é validar essa ideia que me ajuda a passar pelos dias mais dolorosos. Hoje eu uso o meu luto como forma de luta, como forma de falar sobre isso, mesmo que as pessoas não estejam dispostas a ouvir, porque isso precisa ser falado.
Quando fingem que a minha dor não existe eu sinto que matam meu filho pela segunda vez. 


domingo, 22 de outubro de 2017

Só mais uma vez...




“Só mais uma vez…
Queria estar perto dela de novo, sentir seu cheirinho, afagar-lhe os cabelos.
Sentir seu corpinho frágil junto ao meu. Ouvir as batidas de seu coraçãozinho, música que enchia meus dias de alegria.
Sentir ela mexer, como quem dança, de um lado para o outro me fazendo rir.
Andar pela cidade exibindo aquele barrigão que me fazia sentir a mulher mais linda desse mundo!
Arrumar suas roupinhas, sentir aquele perfume de bebê invadindo a casa toda. Deitar num final de tarde na varanda só para fazer planos e pensar como seria quando ela chegasse: Cabelo enrolado? Mãos longas? Sorriso maroto? De gênio fácil ou ariana braba? Gostaria de música ainda o tanto que gosta aqui na barriga?
Seria calma ou inquieta?
Dias e noites sonhando em como seria aninhá-la em meus braços. Olhar em seus olhinhos e enchê-la de beijos.
Meias, casaquinhos, fraldas, berço e brinquedos. Tudo em ordem para sua chegada!
E eu ia contando os dias, as horas, os minutos e os segundos.
E tudo aconteceu rápido demais. Tudo desmoronou e fiquei aqui, só.
De colo vazio.
Minhas mãos ainda procuram as dela. Meus  braços desejam seu abraço. Meus ouvidos, seu choro, e meu coração, sua presença.
E tudo o que eu queria hoje era ter ela aqui, juntinho a mim.
Só mais uma vez…”


(Flávia Cunha)

Ilustração: Alena Kalchanka Art

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