domingo, 29 de outubro de 2017

Depoimento de Juliana Couto



Na voz da mãe, Juliana.

Seu corpo será controlado à primeira ideia de maternidade. Se você engravidar e abortar espontaneamente, seu filho será considerado pouco. A curetagem é simples, o aborto natural também, a mulher se recupera e logo outro filho vem porque não era a hora. Mas se a mulher quiser abortar porque não quer ser mãe, quaisquer que sejam as razões que a movem, ela é uma assassina de bebês. Se a mulher optar por um parto domiciliar, ela será condenada como a natureba que coloca em risco não só a vida dela, mas a do bebê. Mas se ela optar por uma cesárea agendada, será aplaudida, ainda que os embasamentos científicos apontem cada vez mais o risco da desnecesárea. Se essa mulher abortar espontaneamente, impedindo qualquer concretização de parto domiciliar, e optar por abortar naturalmente em sua casa, ela não será condenada. Aliás, ninguém se manifestará para recolher aqueles riscos, agora desfeitos em aborto, no chão.

Abortar dói. Física e espiritualmente. É preciso escrever e reescrever a sensação de perder o chão sob os pés e seguir andando, a sensação de dor que vem das entranhas e segue acompanhando um corpo que já não gesta como antes. Dói repassar os pontos, perceber os sinais antes não percebidos, compreender que é preciso que o corpo saia de você. Abortar dói. O útero dilata pouco, mas dilata, e rapidamente. Diferentemente da contração do parto, que irradia das costas em volta do corpo, a dilatação do aborto faz doer o útero, as costas, a alma, separadamente. Foram meses até que as palavras sensoriais de abortar se encontrassem: imagine-se em um queda d’água com um filete de água forte e sem forma, correndo a esmo. Imagine-se desesperadamente tentando pegar esse filete e torná-lo uma pequena poça em suas mãos, um poça pequena e constante. Imagine essa poça como a única possibilidade de vida. A água não é controlável. Nem a vida, nem o aborto. Abortar um filho é a sensação constante da água esvaindo pelas mãos. Ainda que conscientemente se saiba que a água não pode ser controlada, pegada, guardada, o inconsciente não se exime em tentar, tão forte, rígido e competente quanto a água. Essa é a sensação desesperadora de perder um filho. Diferentemente do parto, quando em grandes passagens espirituais nascem um bebê, uma placenta e uma mãe, no aborto nasce uma mãe, com uma ruptura na alma avassaladora. O útero dá conta de desfazer as camadas do endométrio (que um dia formariam a placenta) que se desprende em pedaços e sai em pedaços, grandes placas de sangue. O sangue é constante. Ele jorra, ele sai, não para, não há intermitência, pausa ou descanso. Há descaso. Em algum momento entre as placas de sangue, é possível perceber a saída de uma pequena bolsa, transparente, pequena, com um pequeno formato no interior. Já sem vida, sem batimentos, apenas a ideia do que seria o segundo filho. Dói.

Dói o desligamento, dói a quebra, dói a interrupção, dói compreender e aceitar ao mesmo tempo em que o querer o filho prevalece - das complexidades da maternidade. Dói a invisibilidade da família. No caso, essa família, tão bem encaixada em tantos padrões e ideias, com a consciência desses padrões e desse querer sem família. Uma mãe, um pai, dois filhos - quatro, mas um deles invisível. Dói a ideia de que todos ao redor veem seu filho como peça substituível : logo vem outro, não era para ser, não se sabem os desígnios da vida, é aprendizado (esse é especialmente cruel; afinal, quem em sã consciência fala para uma mãe que perdeu um filho que abortar placas de sangue e ver seu filho morto saindo da vagina é um aprendizado, em pleno luto?). Dói lembrar dos comentários anteriores: aquela prima que avisou “só conta para todos depois das 12 semanas”, aquela tia que disse “juízo”.

Não basta você se encaixar em todos os padrões necessários (cabe aqui, esclarecer que é compreendendo o que são padrões sociais, estereótipos e entendendo o que nos leva a ser assim), não basta você optar pela monogamia, se estabelecer em um relacionamento heterossexual, não basta você ter um filho dentro de um casamento, não basta os responsáveis por essa família, a mãe e o pai, trabalharem, se encaixando em padrões nojentos do mercado de trabalho e com essa consciência trabalhando dentro deles, coagindo-se sem coagir, não basta optar pelas boas novas da educação infantil, não bastam os anos de estudo e dedicação acadêmica, as noites profissionais em claro, não basta o que a vida já deixou de marcas profundas em ambos, não basta o medo de reencontrar os fantasmas, não basta. Alguém dirá “juízo” ao seu segundo filho, eu seu ventre, que bravamente lutou (e só você sabe) pelas batidas compassadas e fortes de um minúsculo coração. Nada basta. Você vai abortar, vai doer, você vai repassar a história das mulheres de onde veio, da família de onde veio e o “juízo” vai ressoar, o não esperar as 12 semanas vai ressoar.

Ser abençoada com ciclos menstruais pós-aborto curtos, indolores e rápidos é gritar os quatro cantos do universo uterino: obrigada por me poupar. O que não impede que a dor volte, que a lembrança retorne e que de tempos em tempos, o filete de sangue menstrual recorde a tarde em que se perdeu um filho. A dor, as poças de sangue, o buraco na alma já tão escancarado e fundo que é vazio, o vazio da perda. A necessidade de estar ali para o mais velho, aquele que será sempre o mais velho, que ensinou a você tudo. E o mais novo, que invisível, ensinou o outro tudo que você não previra. Dói perceber que o segundo filho não é comemorado pelos familiares e amigos como o primeiro, que ele parece ser menos. Que falam “de novo, grávida?” e que poucas pessoas realmente parabenizaram, torceram, felicitaram.

Dói saber que você dedicou semanas de amor infinito para alguém que precisava partir. Será que esse corpo, ainda sem alma, apenas concepção, ainda a esperar pelo espírito que o habitaria, compreendia meu amor?

Sim, compreendia. Eu o via, tão inteiro quanto o irmão.

Vai filho, eu estarei aqui, ambos invisíveis.

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