terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O que eu sinto faz parte do luto ou estou com depressão?



Quando uma mãe sofre uma perda gestacional ou do recém nascido, a dor é intensa e é comum que haja dificuldade em discernir se o que está havendo é um processo de luto, ou se instalou-se uma depressão. Para iluminar essa questão, vamos conversar um pouco sobre o que é o luto, o que é a depressão, e qual a relação entre os dois.

O que é o luto?


O luto é o processo que ocorre em reação a uma perda que impacta áreas extensas da vida e que ressignifica muitos aspectos daquilo que relacionamos com a nossa identidade.

Para começar essa explicação, vou dar um contra-exemplo: se uma pessoa perde por exemplo o seu celular, essa perda impacta áreas limitadas de sua vida (principalmente a sua conta bancária, pois obriga a comprar outro aparelho), e pode até trazer uma certa tristeza ao lembrar por exemplo das fotos que essa pessoa tinha lá e não vai recuperar. Mas essa perda não muda quem essa pessoa é; não muda sua identidade, nem seus planos para o futuro, nem o significado de eventos na sua história. Então, podemos dizer que há sentimento de tristeza, mas não vamos descrever isso como um processo de luto.

Por outro lado, se uma pessoa perde por exemplo o seu marido, essa perda, além de forçar mudanças em áreas extensas da vida tais como, além da conta bancária, a casa, a rotina, os hábitos de sono,de alimentação, a compra do supermercado, a quantidade de roupa para lavar, o cuidado com os filhos, o relacionamento com a família do cônjuge, essa perda também impacta diretamente aspectos da vida relacionados à identidade. Questões do tipo “quem sou eu?” (se eu sou casada ou viúva, se eu sou uma pessoa solitária ou não, se eu gosto de ficar em casa ou não, se eu tenho família ou não) aparecem na sequência deste evento, exigindo revisões. Assim também seus planos para o futuro precisam ser revistos: se pretende ter mais filhos ou não, o que pretende fazer na sua aposentadoria, o que fará nas próximas férias… A percepção desta mudança que aconteceu com a morte do ente querido traz muita tristeza; todo esse processo de reavaliações e mudanças nas interpretações e ideias consome muito tempo e energia. A esse processo como um todo damos o nome de luto.

Assim, o luto é um processo natural e muito necessário que nos permite nos adaptar a uma nova realidade. Sem ele nós não conseguiríamos nos ajustar ao que aconteceu; continuaríamos tentando viver da mesma maneira que vivíamos antes. A pessoa que perdeu o marido continuaria tentando falar com ele antes de decidir o que cozinhar no jantar; e ao não conseguir fazer contato com ele, continuaria se sentindo triste e frustrada. O processo do luto permite que se crie uma nova forma de viver, uma nova rotina que incorpora o fato acontecido. Talvez tenha coisas que ela precise aprender a fazer sozinha, coisas que ele fazia por ela. Talvez ela não soubesse dirigir. Quando ela aprende a fazer essas coisas, precisa rever de novo ideias relacionadas à identidade: quem sou eu? Eu era alguém que não sabia dirigir, mas agora eu sou uma motorista. Essa pessoa que perdeu o marido, além de perceber que não pode mais contar com ele para decidir o cardápio do jantar, talvez também decida fazer outras mudanças, talvez perceba que agora não tem sentido mais cozinhar no jantar, e passa a fazer compras para um lanche, e vai de carro até o supermercado. Nesse momento ela passa a poder atravessar essa parte do dia sem entrar em contato tão intenso com o sentimento de perda; sem se frustrar por tentar conversar com alguém que já não está lá; talvez com mais leveza por uma rotina mais fácil de manejar. Ela nunca vai deixar de sentir saudades do marido, mas talvez agora lembre dele de um jeito mais com ternura que com dor. E esse é o trabalho do luto. Por paradoxal que possa parecer, pois o luto é um processo muito dolorido, ele é o caminho de ajuste à mudança que nos permite deixar de sentir tanta dor. É como o processo de cicatrização de um corte: primeiro inflama, fica quente, vermelho, dolorido. Mas é justamente esse processo inflamatório que depois leva a ferida a se fechar. Quando lembramos disso, fica mais fácil ver que o luto é um processo natural e necessário.

Preocupante mesmo é quando o luto não acontece, ou quando ele “enrosca”, ou “empaca”. E isso pode acontecer quando junto do luto está acontecendo um processo de depressão.

Mas então, o que é depressão?


Depressão é uma doença que acontece quando, por fatores fisiológicos, ambientais ou comportamentais, cria-se um desequilíbrio tão grande na bioquímica do cérebro que ele começa a “não funcionar direito” de uma maneira geral. Um dos sintomas da depressão é uma intensa tristeza, mas não é o único sintoma e nem o mais relevante. Por conta do desequilíbrio bioquímico que acontece no cérebro de quem está com depressão, para além da tristeza essa pessoa também vai relatar alterações de humor: ficar mais apática ou mais irritada que o normal considerando a situação; vai relatar que coisas que antes eram prazerosas ou interessantes deixam de ser; ela vai ter muito pouca vontade de fazer as coisas, mesmo coisas que ela antes considerava legais; essa pessoa vai ter dificuldade de aprender coisas novas, dificuldades de manter a atenção, dificuldades com o padrão de sono, tendo ou muito sono, ou insônia, e também de alimentação, comendo demais ou de menos. Atenção para o fato de que na depressão esse é um estado quase que permanente. Diferente de uma pessoa saudável, que tem dias em que não está muito bem e pode ter aqui ou ali uma noite de insônia, um momento sem motivação, a pessoa que tem depressão se sente assim a maior parte do tempo, por meses a fio. E um fator importante: essa pessoa vai ter muita dificuldade de romper esses padrões; muita dificuldade de inventar maneiras novas e criativas de resolver os problemas; muita dificuldade em ser flexível e se adaptar. Ela vai muitas vezes descrever que está presa, sufocada, sem saída. Pode perder a esperança de melhora e, em casos extremos, achar que se matar pode ser a única solução para sair desse “buraco”.

Como disse no parágrafo anterior, a depressão pode ser causada por fatores fisiológicos, ambientais ou comportamentais. Assim, nem sempre é necessário o uso de medicamentos antidepressivos para o tratamento da depressão. A terapia pode ajudar a modificar os aspectos ambientais e comportamentais e trazer um alívio significativo, e muitas vezes essa modificação é o fator chave do tratamento e da prevenção de recaídas. Porém, como também mencionado acima, quando se instala a depressão o cérebro como um todo não está funcionando tão bem quanto deveria e as capacidades de atenção, aprendizado de novos comportamentos, e a sensibilidade a estímulos prazerosos estão reduzidas. Isso torna a terapia mais difícil, pois o sucesso da terapia muitas vezes depende do aprendizado de novas estratégias e comportamentos. É por esse motivo que, como diversos estudos indicam, o melhor resultado para o tratamento da depressão está na combinação dessas duas estratégias; a medicação para um alívio de curto prazo e um aumento na plasticidade do cérebro, (que é a capacidade de se aprender coisas novas e de se modificar), e a terapia para a promoção das modificações duradouras que permitem se tornar independente do medicamento e nos protegem das recaídas.

Como se pode perceber, o luto e a depressão são duas coisas bem diferentes. Um é um processo normal, necessário e adaptativo; a outra é uma doença que pode levar à morte em casos extremos. Porque essas duas coisas se confundem tanto uma com a outra? E principalmente: existe relação entre luto e depressão?

Para responder a essa pergunta, eu vou fazer uma analogia: vamos dizer que o luto é uma gripe, enquanto que a depressão é uma pneumonia.

Como é uma gripe? Em geral, tem evolução benigna, e se estiver tudo bem com a pessoa, se estiver saudável, se alimentando bem e descansando, o corpo consegue resolver isso sozinho. Pode levar um tempo, e a pessoa pode até querer tomar um antigripal para ajudar a lidar com os sintomas, mas em geral no final dá tudo certo. O luto também: em geral evolui bem, e se a pessoa estiver razoavelmente equilibrada, sendo cuidada por seus entes queridos, em um ambiente minimamente adequado, onde as pessoas respeitem seu tempo e seus sentimentos, costuma se resolver sozinho. Pode até levar um tempo, e a pessoa pode querer contar com um auxílio de um grupo de apoio ou uma psicoterapia para lidar com os sintomas, mas no final dá tudo certo.

Mesmo assim, uma gripe pode ser preocupante em alguns casos: se a pessoa já tem doenças respiratórias prévias, tipo asma; se a pessoa está com o sistema imunológico enfraquecido, ou se já está doente com alguma outra coisa. É mais difícil de tratar se a pessoa vive num lugar com um ambiente muito ruim: se o ar é muito frio, muito seco, ou muito poluído. E normalmente nesses casos a gripe preocupa justamente porque pode virar uma pneumonia. Igual o luto: se a pessoa já não vinha bem, já enfrentava algum tipo de sofrimento emocional como uma história de abandono ou invalidação, se tinha perdas anteriores não resolvidas, ou se vive num ambiente muito hostil, onde não tem apoio, é silenciada, julgada, a coisa pode se complicar. E nesse caso, o luto pode virar depressão, que é como uma pneumonia: é mais preocupante, merece mais cuidado, pode evoluir mal, normalmente precisa de medicação pra se resolver. Não pode bobear.

Então veja: não é que uma coisa sempre leva à outra; você pode ter uma gripe e ela nunca virar pneumonia, assim como vc pode ter pneumonia sem ter tido gripe. Mas dá pra dizer que estar com gripe pode aumentar a sua chance de ter pneumonia em alguns casos, porque ela te deixa mais vulnerável. Assim também o luto e a depressão: muitos lutos se resolvem bem sem virar depressão, e muita gente tem depressão sem ter tido luto. Mas o processo do luto é exigente para o nosso corpo, para a nossa mente, e para as nossas emoções, e pode nos deixar mais vulneráveis. É nesse sentido que muitas vezes a terapia ou os grupos de apoio podem nos proporcionar aquele descanso tão merecido que acelera nossa recuperação, e previne uma evolução ruim. E caso mesmo assim a coisa se complique e o luto vire depressão, a gente já venceu aquela etapa de ter que se apresentar pro terapeuta ou no grupo pra explicar tudo o que está acontecendo, e pode contar com um auxílio mais imediato.

Autoria: Tatiana Perecin - psicóloga

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